Luiza Nagib Eluf, O Estado de S.Paulo

17 de março de 2021

Lavagem de dinheiro não é o mesmo que recolher valores monetários, limpá-los e torná-los mais adequados à realização de negócios. No entanto, seria exatamente isso, no sentido simbólico do termo. Dinheiro “sujo” é aquele que foi obtido por meio de práticas ilícitas, é moeda que não se deve pôr em circulação por estar maculada em sua origem.

Foi em 1998, por meio da Lei n.º 9.613, que o Brasil pela primeira vez se ocupou de regulamentar a prática condenável de se prevalecer alguém da obtenção de riqueza ilícita e, depois de acumular quantia vultosa, encontrar uma forma de transformá-la em riqueza aparentemente lícita, ocultando a sua origem. Desde a sua criação, em 1998, a lei de lavagem – como é conhecida – foi sendo alterada, até que em 2012 se chegou a uma nova redação, que está em vigor.

O crime de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens consiste em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal” – nos termos da redação dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 12.683/2012, que alterou o texto original. Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, os converte em ativos lícitos; adquire-os, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, tem em depósito, movimenta ou transfere; importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros. Incorre, ainda, na mesma pena quem utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal; participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nessa lei”. A pena é de reclusão de três a dez anos e multa.

Obviamente, o crime de lavagem de dinheiro somente existirá se houver ao menos um delito praticado anteriormente que venha a configurar a origem ilícita do enriquecimento obtido. Trata-se, portanto, de crime derivado de outro(s).

Anteriormente às alterações trazidas pela Lei n.º 12.683/2012 estava estabelecido um rol de delitos específicos chamados de “crimes antecedentes” que estariam aptos a caracterizar a lavagem, dentre os quais o tráfico de entorpecentes; terrorismo e seu financiamento; contrabando, tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; extorsão mediante sequestro; crime contra a administração pública; corrupção; crime contra o sistema financeiro. No entanto, após o advento da Lei de 12.683/2012, o rol de crimes foi abolido, passando-se a considerar que qualquer ilícito poderia dar origem à lavagem de dinheiro, ou mesmo nenhum crime, apenas uma contravenção seria suficiente. Foi abolido o rol de crimes antecedentes, passando-se a considerar qualquer infração penal como geradora de lavagem.

É evidente que o sistema brasileiro acompanhou a tendência mundial de cerceamento da livre circulação de capitais, tornando-a absolutamente rígida e controlada. Tal modificação é hoje considerada pela doutrina penal como excessivamente abrangente e inadequada, passando-se ao incompreensível entendimento de que, além de qualquer crime ou contravenção estarem aptos a caracterizar lavagem, ainda poderia ser admitida a sanção penal em caso de não estar exatamente definido qual seria o suposto crime que teria gerado a acumulação de capitais.

Ou seja, a “lavagem” passou a ser crime independentemente da comprovação segura da prática de conduta delituosa anterior. Assim, mesmo que não esteja provada infração antecedente, poderá alguém vir a ser inculpado do crime de lavagem.

O tipo penal tornou-se tão abrangente que qualquer capital acumulado pode ser considerado suspeito, apenas por uma suposição decorrente de meros indícios. Deste prisma, a eventual possibilidade de determinado ativo financeiro originar-se de ilícito penal deixa de ser considerada fruto de uma conduta antecedente para, na prática, configurar crime autônomo, resultante de mera ilação persecutória.

O Direito Penal está sendo derretido, a presunção de inocência e as demais garantias constitucionais, desconsideradas, em nome de uma aparente defesa da moralidade. Evidente, portanto, que, com a última reforma da lei em tela, que praticamente eliminou a necessidade da comprovação de delito antecedente (que teria “sujado” os bens amealhados por alguém), autorizou-se a persecução penal baseada em meros indícios de ocorrência de qualquer infração.

Em razão disso, torna-se clara a necessidade de alteração legal, tendo-se em vista os muitos erros cometidos em nome do combate à lavagem de capitais. A Câmara dos Deputados instituiu uma comissão de juristas encarregados da elaboração de um anteprojeto de reforma legal, com o que se pode esperar um balizamento mais aperfeiçoado para evitar as acusações abusivas, em nome da segurança jurídica.

ADVOGADA. E-MAIL: LUIZAELUF@TERRA.COM.BR