Por Luiza Nagib Eluf

Em maio de 2015 o Supremo Tribunal Federal fixou tese de repercussão geral no sentido de que o Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria e por prazo razoável, investigação de natureza penal, desde que respeitados os limites dos direitos e garantias individuais que assistem a qualquer suspeito, indiciado ou não, sob investigação do Estado (RE 593727, repercussão geral, Rel. Min. César Peluso; Rel. do Acórdão Min. Gilmar Mendes. Publicado em 8/9/2015). Foi assim que nasceu o Procedimento Investigatório Criminal – PIC, que deveria se assemelhar ao Inquérito Policial (este previsto no Código de Processo Penal nos artigos 4° a 23), mas que acabou tomando outros rumos, distanciando-se, em certa medida, do Direito Processual e Material Pátrios.

Ocorre que, munidos da possibilidade de investigar, denunciar, processar e pedir a condenação de alguém, os representantes da Nobre Instituição do Ministério Público, tanto na esfera Federal quanto na Estadual, em determinados casos passaram à margem de alguns princípios fundamentais de Justiça, tais como o direito à ampla defesa, à imparcialidade do agente público (apesar de ser parte no processo, a atuação do membro do MP deve ser isenta e ponderada, não se admitindo idéias pré-concebidas ou empenho persecutório exacerbado), além dos direitos civis e dos direitos humanos previstos na Constituição Federal. Tanto isso é verdade que, em janeiro de 2018, o Conselho Nacional do Ministério Público entendeu por bem regulamentar o procedimento referente ao PIC, estabelecendo normas que impunham balizas de fundamental importância, dentre as quais a prevista no artigo 9º, da Resolução 183, de 24/01/2018, que assim diz: “O autor do fato investigado poderá apresentar, querendo, as informações que considerar adequadas, facultado o acompanhamento por defensor”. Em verdade, não é recomendável deixar a cargo do suspeito a decisão de prestar informações sobre os fatos a ele atribuídos, mesmo porque, na prática, o investigado não fica sabendo que está sendo submetido à persecução penal, pois tudo é apurado sem divulgação e sem que se lhe dêem ciência. Desta forma, quando a acusação vem a público, já se encontra em curso uma ação penal, anteriormente desenvolvida de forma sigilosa durante um PIC, que desconsiderou o direito de ampla defesa, ao não permitir a manifestação do investigado que ignorava a existência do procedimento contra si instaurado. Houve casos em que os tidos como suspeitos, cientificados da existência do PIC por outros meios não oficiais, solicitaram sua oitiva diretamente aos membros do Parquet encarregados das investigações, mas ainda assim, tal solicitação não foi considerada e os investigados não conseguiram ser ouvidos. Desta forma, diante da impossibilidade de o suspeito apresentar sua versão dos fatos, o processo penal iniciou desprezando-se o direito à ampla defesa.

É de se observar que o Código de Processo Penal, ao abordar o Inquérito Policial, determina em seu artigo 6º: “Logo que tiver conhecimento da prática de infração penal, a autoridade policial deverá: … IV- Ouvir o ofendido; V- Ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III, do Título VII, deste livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura”.

Explícita, portanto, a preocupação que sempre teve a legislação Pátria em permitir a ampla defesa do acusado. No entanto, a criação do PIC, tanto no texto escrito quanto na prática, aboliu tais direitos, já de há muito consolidados. Em certos casos, o investigado foi denunciado sem nenhuma observância às normas e garantias individuais. A persecução penal ganhou as manchetes divulgando fatos ainda não provados e atribuindo condutas criminosas a determinadas pessoas sem dar a elas o direito de defesa previsto na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Escritórios de advocacia foram vasculhados pela polícia, mandados genéricos foram emitidos, em afronta aos mandamentos do artigo 133 da Constituição Federal  que estabelece a inviolabilidade dos advogados quanto a seus atos e manifestações no exercício da profissão. Desta forma, o Brasil vem assistindo a condenações sem provas, a prisões arbitrárias e espetaculosas, a emboscadas tramadas sob o domínio do ego dos agentes da Lei e à prevalência do escândalo em prejuízo da verdade. As últimas investidas midiáticas contra escritórios de advocacia e residências de advogados, de desembargadores e ministros em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília mostrou que ninguém está a salvo de uma condenação sem crime; de uma punição injusta ou desproporcional, em nome de uma pseudo Justiça praticada por pessoas que buscam alimentar suas próprias vaidades. Reputações são jogadas na lama por meras elucubrações, sem prova de ilicitude e sem que o investigado tenha sequer sido ouvido. Seria o fim do direito de defesa? A Ordem dos Advogados do Brasil está atenta a esses eventos e, recentemente, aprovou provimento que regula a atuação contra escritórios de advocacia, na sessão realizada em 27 de outubro de 2020, a fim de evitar a violação das prerrogativas previstas em lei. Esperamos, assim, que não haja mais abuso de autoridade.

Luiza Nagib Eluf é advogada e escritora.
E-mail: luizaeluf@terra.com.br

Novembro de 2020