Por Luiza Nagib Eluf

O rito de primeiro grau adotado no Código de Processo Penal Brasileiro para os julgamentos pelo Tribunal do Júri é dividido em duas fases judiciais. A primeira é chamada de formação da culpa, que engloba a instrução, durante a qual são ouvidas testemunhas, réus, peritos, elaborados laudos e, eventualmente, ouvidos os policiais que fizeram as apurações na fase de inquérito. Durante esse período, a Justiça procura colher elementos probatórios que indiquem, ou não, a ocorrência de um homicídio ou feminicidio, tentado ou consumado, e de quem teria sido seu provável autor(a). Terminada essa primeira fase judicial, o(a) juiz(a) decide se é caso de pronúncia, ou seja, se o réu deve ser levado a julgamento pelo Tribunal do Júri, ou se deve ser sumariamente absolvido, ou se é caso de impronúncia (não foram apresentados indícios probatórios suficientes para determinar o julgamento pelo Tribunal do Júri). Desta forma, ocorrendo a colheita de provas para indicar a possibilidade de o(a) acusado(a) ser o autor do delito, ele(a) é levado(a) ao plenário do Júri, onde será julgado por sete jurados escolhidos dentre os membros da comunidade local.

Superados eventuais recursos, inicia-se a segunda fase, que estabelecerá a culpa ou a inocência, ou seja, o(a) suspeito(a) será julgado culpado ou será absolvido, pelo chamado “Conselho de Sentença”. Durante o julgamento em Plenário, as provas colhidas são novamente apresentadas a fim de que os jurados apreciem os fatos e, ao final, possam votar condenando ou absolvendo o(a) ré(u).

O que vem sendo discutido recentemente, devido a uma decisão do Supremo Tribunal Federal, é até que ponto vai a soberania do Júri. Toda e qualquer sentença do Júri precisa ser acatada? Mesmo que a decisão fira os direitos humanos, mesmo que sejam aceitas atrocidades pelos jurados, mesmo que sejam manifestamente contrariadas as provas dos autos? Nosso Código de Processo Penal e nossa Constituição Federal reconhecem a soberania dos vereditos dos jurados, mas admitem recurso de apelação quando a decisão proferida por eles é “manifestamente contraria à prova dos autos” (artigo 593, III, d, do CPP).

Recentemente, um réu foi absolvido pelo Tribunal do Júri de Minas Gerais do crime de feminicídio, uma conduta considerada hedionda. Em 29 de setembro de 2020, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal – STF manteve a decisão proferida pelo Tribunal do Júri que acolheu a tese da legítima defesa da honra, reformando decisões do Tribunal de Justiça de MG e do Superior Tribunal de Justiça que haviam anulado a decisão absolutória e determinado que o réu fosse submetido a novo Júri, conforme previsão legal. Tal posicionamento do Supremo parece-nos incompreensível. A Suprema Corte decidiu pela soberania do juri popular, confirmando a decisão equivocada dos jurados, apesar da expressa previsão legal que autoriza novo julgamento. Equivocado, sem dúvida, o posicionamento que negou o novo julgamento pelo Júri, pois calcado na tese já superada da subserviência feminina e da ausência de direitos humanos quando a vítima é mulher. A decisão dos jurados, posteriormente respaldada pelo Supremo, nada mais significou do que a negativa de equipararem-se, na prática, os direitos humanos entre homens e mulheres. Tratou-se de uma “licença para matar” , em obediência ao sistema patriarcal ainda em vigor apesar da determinação expressa na Constituição Federal que equipara homens e mulheres em direitos e obrigações.

O crime de feminicidio, inserido no Código Penal Brasileiro em março de 2015, (Lei n.13.104/2015) estabelece no art. 121, § 2°, VI, que o homicidio será qualificado se for cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Desta forma, absolver um feminicida é admitir que as mulheres têm menos direitos que os homens e podem ser eliminadas por eles se praticarem alguma insubordinação… Tal entendimento representa um grande retrocesso e uma ruptura na modernização do nosso sistema penal. Há muito o Brasil vem lutando contra a tese abominável da “legitima defesa da honra”, que prosperou nos Tribunais da carnificina feminina até meados do século passado, foi banido pela evolução dos costumes mas ressurge agora das cinzas para nos encher de vergonha. Trazer de volta a abominável tese da “legítima defesa da honra”, ainda mais pelo Supremo Tribunal Federal, parecia-nos impensável. Seria isso resultante da tendência ao retrocesso que nos persegue? O Tribunal do Júri, não raras vezes, comete erros que são corrigidos pelos Tribunais de juízes togados. Não se pode admitir o menosprezo aos direitos assegurados na Constituição e absolver feminicidas em nome de uma soberania calcada no desrespeito aos direitos humanos de há muito consolidados e universalmente reconhecidos. Fazemos fé que esse entendimento do STF venha a ser alterado pela própria Corte.

Consultor Jurídico
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