No ano de 2015, mais exatamente em 9 de março, foi sancionada a Lei nº 13.104 que prevê o crime de “feminicidio” como circunstância qualificadora do crime de homicídio, descrito no artigo 121 do Código Penal. Na mesma ocasião, foi alterada a Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) para incluir o feminicidio no rol dos crimes punidos com maior rigor penal.

Estamos em 2016 e não são poucas as pessoas, inclusive alunos de cursos de Direito e mesmo advogados, que parecem perplexas com essa novidade, o que é natural, pois se trata de uma alteração ainda pouco comentada e não incluída na maioria dos livros de doutrina jurídica. No entanto, como a própria palavra já diz, feminicidio é, obviamente, o assassinato de pessoa do sexo feminino. No entanto, para que essa conduta esteja configurada de maneira destacada e não abrangida pelo tradicional crime de homicídio, está claro que alguma peculiaridade esse delito contém. Não se trata de qualquer homicídio de mulher mas, como explicitado na Lei, consiste em “matar mulher por razões da condição de sexo feminino” (art. 121, § 2º, VI do Código Penal). O mesmo artigo, em seu § 2º, inciso VI, § 2º – A, esclarece que “considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:  I- violência doméstica e familiar; II- menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Assim, a Lei deixa muito clara a diferença entre homicídio de mulher e feminicidio. Em resumo, a criação da figura penal do feminicídio veio esclarecer que uma pessoa que morreu assassinada não teria morrido nas mesmas circunstâncias se não fosse mulher. Trata-se de escancarar a violência de gênero e aumentar seu rigor punitivo, medida importante na intimidação do agressor.

A mesma Lei ainda prevê um aumento de pena de um terço até metade (que no caso do homicídio vai de 12 a 30 anos de reclusão) se o crime for cometido: I- durante a gestação ou nos 3 meses posteriores ao parto; II- contra pessoa menor de 14 anos ou maior de 60 anos ou com deficiência; III- na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Nem toda a comunidade jurídica do Brasil entendeu as razões que levaram o Congresso Nacional a elaborar o projeto de lei do feminicidio e a Presidência da República a sancioná-lo, criando um novo tipo penal. Algumas críticas mordazes e improcedentes, a princípio, foram feitas ao feminicidio, no sentido de que “homicídio seria homicídio, sem necessidade de especificação, não importando se de homem ou de mulher, de jovem ou de idoso”, mas é bom lembrar que nossa Lei Penal já há tempos prevê formas específicas de homicídio, como o infanticídio e o aborto. Além disso, a doutrina especifica o parricídio e o matricídio, o genocídio e o fratricídio, mas, ainda que assim não fora, o feminicidio teria de ser criado, pois o morticínio de mulheres por motivos passionais (e portanto de gênero, resultante de violência doméstica) é gigantesco no Brasil.

Com uma taxa de 4,8 homicídios por cada 100 mil mulheres, em um grupo de 83 países, o Brasil ocupa a vergonhosa posição de quarto pior país no ranking da violência de gênero, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em comparação com os dados referentes aos países considerados civilizados, o Brasil tem 48 vezes mais feminicidios do que o Reino Unido, 24 vezes mais do que a Dinamarca e 16 vezes mais do que o Japão. Nosso país está atrás apenas de El Salvador, que ocupa o lamentável primeiro lugar mundial de violência contra a mulher, com uma taxa de 8,9 mulheres assassinadas a cada 100 mil; da Colômbia, com 6,3; da Guatemala, com 6,2; e empata com a Federação Russa com 4,8. O país que menos mata mulheres é a Nova Zelândia, com uma taxa de 0,8 mortes a cada 100 mil (dados colhidos entre os anos de 2011 e 2013).

A análise das estatísticas mostra que a violência de gênero está intimamente ligada à brutalidade do patriarcalismo, pois o feminicidio é, em regra, praticado pelo homem. E não se trata de qualquer homem, não se trata de um desconhecido, mas daquele que convive com a vítima.

Em vista disso, a criação de uma nova definição criminal inserida no ordenamento jurídico penal brasileiro não se mostra desnecessária ou inócua. Ao contrário, tem função esclarecedora e inibidora, educativa e elucidativa, ao tornar visível e estatisticamente computável algo que estava oculto sob o manto da palavra genérica “homicídio”. Em verdade, praticar homicídio, no sentido estrito do vocábulo, significa “matar um homem”. Aplicado em sentido amplo, quer dizer matar uma pessoa de qualquer gênero, mas essa amplitude apenas acarreta mais invisibilidade à mulher.

Até o presente momento, 14 países da América Latina têm leis que versam sobre o crime de feminicidio: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Peru e Venezuela.

O Brasil já deu vários passos na defesa da integridade física e psicológica da população feminina, mas as medidas adotadas ainda não se mostraram suficientes para fazer diminuir os índices de violência de gênero. Por essa razão, devemos continuar buscando caminhos para alcançar a eficiência que nos possibilitará viver em uma comunidade pacificada.