Constituição precisa ser aperfeiçoada para que a proteção aos direitos da mulher seja realidade

LUIZA NAGIB ELUF*, O Estado de S.Paulo

04 de janeiro de 2020 | 03h00

O crime de estupro sempre foi apenado com reprimendas severas em nossa legislação penal. Não há dúvida de que a conduta de forçar alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar um ato sexual contra a sua vontade é muito grave. O Código Penal de 1940, na época em que entrou em vigor, estabelecia duas modalidades de agressão sexual distintas (artigos 213 e 214): uma envolvendo somente a relação sexual vaginal, que era chamada de “estupro”; e outra modalidade referente aos “outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal”, que se chamava “atentado violento ao pudor”. Assim, durante sete décadas os homens não podiam ser estuprados, o termo “estupro” só se referia à mulher. Os homens, ao serem submetidos a atos sexuais forçados, eram “violentados”.

Claro que era apenas uma questão de nomenclatura preconceituosa, que estigmatizava mais a mulher vítima do que o homem, tendo em vista que a palavra “estupro” sempre teve um significado mais forte do que suas substitutas, como “violação”, “abuso”, “ataque”, “ofensa sexual”, etc. Velhos tempos, velhas normas, muitos preconceitos.

O pior da situação era, porém, outro dispositivo, esse, sim, terrível, horroroso, causador de injustiças brutais. Os artigos referentes aos ataques sexuais, em suas variadas formas, eram de ação penal privada, ou seja, estavam condicionados à representação da parte da vítima. Tal situação estabelecia que, caso alguém sofresse um estupro, ou um atentado violento ao pudor, ou outra modalidade de ataque sexual, não poderia contar com o trabalho da polícia para iniciar uma investigação a não ser que comparecesse à delegacia, no prazo de seis meses, e “representasse” ao delegado, manifestando inequívoca vontade de ver processado o autor do delito. Passados seis meses do estupro, a vítima decaía do direito de ver processado o seu agressor. O mesmo valia para o “atentado violento ao pudor”.

Se, mesmo nesse exíguo prazo , a vítima recorresse à polícia e fizesse a representação, ela não poderia contar com a atuação do Ministério Público para processar o estuprador. A lei determinava que, no caso de a vítima aceitar e desejar o processo-crime, ela teria de contratar e pagar um advogado para fazê-lo, pois tal ação penal era, usualmente, privada, e não pública!

Evidentemente, poucos agressores eram julgados – e raramente condenados -, diante de tantas dificuldades. Além disso, havia um dispositivo legal que perdoava o estuprador se ele se casasse com a vítima. Draconiano? Sim, mas tem mais…

Em 7/2/2009 entrou em vigor a Lei n.º 12.015, que reformou e condensou os artigos 213 e 214 do Código Penal, dando-lhes a seguinte redação: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”: Pena – reclusão de 6 a 10 anos. Se da conduta do autor resultar lesão corporal grave ou se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos, a pena será de reclusão de 8 a 14 anos. Se da agressão resultar a morte, a pena será de 12 a 30 anos.

Antes da reforma de 2009, a Lei n.º 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) já havia incluído o estupro em seu rol, demonstrando que nosso ordenamento jurídico não seria tolerante com tal tipo de conduta. Mas o verdadeiro avanço veio em 2018 (quase ontem!), com a Lei n.º 13.718, que tipificou os crimes de “importunação sexual e de divulgação de cena de estupro” e tornou pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecendo causas de aumento de pena para esses crimes e incluindo outras causas de aumento de pena para os estupros coletivos e corretivos.

Apesar dos esforços já envidados para coibir os ataques sexuais, porém, resta um item muito importante: tornar o estupro e seus derivados crimes imprescritíveis.

Está em tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 64/2016, que altera o inciso XLII, do artigo 5.º da Constituição federal para tornar imprescritíveis os crimes de estupro. Essa PEC já foi aprovada no Senado e está, no momento, tramitando na Câmara dos Deputados – desde agosto de 2017. Em sua justificativa, a PEC observa que “o estupro é um crime que deixa profundas e permanentes marcas nas vítimas, sendo que a ferida psicológica dificilmente cicatriza”. Além disso, a justificativa argumenta que “a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos”.

No presente momento, o Brasil acompanha, estarrecido, os desdobramentos do chamado “caso João de Deus”, o médium de Abadiânia que foi apontado por muitas mulheres como abusador sexual compulsivo. Segundo a Polícia Civil e conforme dados publicados pelo G1, foram mais de 500 relatos de mulheres vítimas de violência sexual atribuídas a ele. No entanto, diante das limitações impostas pelo instituto da prescrição, é possível que algumas delas não consigam receber a indenização por dano moral, diante da prescrição cível, que em geral, é de três anos (artigo 206, parágrafo 3.º, inciso V, do Código Civil). Ainda assim, as vítimas continuam clamando por Justiça e buscando formas de receber o devido ressarcimento pelos danos físicos e morais sofridos.

Fica o nosso apelo à Câmara dos Deputados para que, o quanto antes, aprove a PEC 64/2016, referente ao estupro, bem como a PEC 75/2019 que torna imprescritível e inafiançável o feminicídio. A realidade dos fatos, no Brasil, não deixa dúvidas de que a Constituição federal precisa ser aperfeiçoada, para que a proteção aos direitos da mulher se torne, finalmente, uma realidade.

* ADVOGADA CRIMINAL, FOI PROCURADORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO E TEM SETE LIVROS PUBLICADOS, DENTRE OS QUAIS “A PAIXÃO NO BANCOS DOS RÉUS”

A apresentadora Cinthia comandou o programa que teve participação também das jornalistas Carla Mota e Denise Oliveira.

Na última sexta-feira (24/01), Luiza Nagib Eluf, advogada criminal, procuradora de Justiça de São Paulo aposentada e integrante do Ministério Público Estadual de São Paulo por 29 anos, participou do programa Papo de Mulher, que vai ao ar das 15h às 16h30, pela Rádio Capital (1040 AM). As jornalistas Carla Mota, Denise Oliveira e eu, Cléo Francisco, estivemos presentes para debater a questão da violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha e do Feminicídio foram explicadas com detalhes para os ouvintes e se discutiu também outros assuntos, como o machismo e formas de as mulheres se protegerem em uma relação abusiva.

Mas afinal, o que é feminicídio? A Advogada Luiza Nagib Eluf explicou. “Feminicídio é uma modalidade do homicídio e que se refere exclusivamente à mulher no Código Penal Brasileiro. É matar mulher por razões da condição feminina na sociedade. O Código usa condição do sexo feminino, mas não é uma questão de sexo apenas. É uma questão de gênero. E é uma novidade. O feminicídio foi criado no Brasil, em 2015, pela luta das mulheres que conseguiram vencer uma barreira quase que intransponível porque muitos não queriam colocar o feminicídio no Código. E não era esperado que fosse tão difícil. É irracional você não querer punir a morte de mulheres só porque elas são mulheres. Então elas são consideradas inferiores, com menos direitos, inclusive com menos direitos à vida. É um absurdo que tenha sido tão difícil. E depois que foi aprovado, ainda no ano seguinte, houve uma tentativa de tirar o feminicídio do Código, mas aí não logrou êxito, graças a Deus e à nossa luta. E por mais incrível que pareça, a maior parte das assinaturas que eles conseguiram contra o feminicídio era de mulheres. A mulher é manipulada pelos homens na nossa sociedade. A mulher é esmagada, é retirada a autoestima delas, ela acha que é menos. E ela tem raiva da outra mulher. É muito comum mulher odiar outra mulher. Mas isso é a cultura patriarcal que, muito espertamente, colocou uma mulher contra a outra para poder dominar. A hora que as mulheres se unem ninguém pode contra elas” comentou a advogada.

Em junho de 2019, o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) publicou o resultado do Atlas da Violência 2019, produzido pelo instituto e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo os dados, 2017 registrou um aumento dos homicídios femininos no Brasil, chegando a 13 por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007. E de acordo com a pesquisa, 66% delas eram negras. Considerando o período entre 2007 e 2017, houve um crescimento de 30,7% nos homicídios de mulheres no Brasil.

No programa discutiu-se também a dinâmica familiar na qual, geralmente, os trabalhos domésticos são responsabilidade apenas da mulher, mesmo que ela tenha um emprego fora de casa.

“Quando as mulheres deixarem de pensar que são escravas, eles vão deixar de pensar que são senhores. O primeiro dia que meu marido me pediu para arrumar a cama disse: “Escuta aqui. A cama é dos dois. É cama de casal. Hoje eu estou cansada e você vai arrumar”. Ele parou, pensou um pouco e resolveu não brigar comigo. E aí ele foi e arrumou o cama.Hoje as mulheres ainda não acordaram para essa escravidão doméstica. Isso é igualdade”, comentou ela, que também é autora do livro A Paixão No Banco dos Réus (Editora Saraiva).

A advogada também falou sobre as transformações ocorridas com as leis Maria da Penha e do Feminicídio. “Mudou muita coisa para a mulher que é vítima, mas não mudou muito o número de vítimas, que continua sendo grande. Hoje a mulher conta com um proteção legal que ela não tinha antigamente. Com a Lei Maria da Penha passamos a definir o que é violência contra mulher e as modalidades. A mulher sofre não apenas violência física, violência sexual. Mas ela sofre também violência moral, violência patrimonial. Tem mulher que chega em casa com o dinheirinho de seu trabalho mensal na bolsa, o marido arranca a bolsa e toma o dinheiro dela. Isso é violência patrimonial. Durante muitos anos, no Brasil, mulher não podia ter dinheiro próprio, não podia nem ter conta bancária. As mulheres não tinham autonomia financeira e até hoje não querem que tenhamos. Hoje uma mulher que não apanha fisicamente, mas que é humilhada, explorada, pode e deve ir à Delegacia da Mulher e pedir proteção contra isso também”.

A entrevista está disponível na página da Rádio Capital, no Facebook, e é só clicar no link abaixo para ouvir o programa na íntegra e saber mais detalhes sobre as leis e como mulheres vítimas de violência devem fazer para se proteger.