Luiza Nagib Eluf, Consultor Juridico, CONJUR

09 de Junho de 2021

Por incrível que possa parecer, o fato de existir um ser denominado “mulher”, que não é igual ao homem no que tange a direitos (embora ambos pertençam à mesma espécie, sendo o varão objeto de respeito enquanto a varoa ainda pode ser prejudicada por normas sociais), até hoje confunde as instâncias reguladoras da sociedade, que continuam tendo dificuldade para entender e aceitar os direitos femininos, em sentido amplo.

Diante da forte cultura patriarcal que impera em terras brasileiras, são muitas as desvantagens que afetam mais da metade da população que é formada por meninas, mulheres e pessoas transexuais (LGBTQ+). Embora a intolerância não mais se justifique em nenhuma área (sexual, econômica, intelectual, social, familiar, jurídica, etc), pois os movimentos por direitos iguais para todos e todas venceram a luta contra o preconceito desde 1988, ainda podemos nos deparar com barreiras construídas judicialmente que levam ao desprezo pelos direitos de pessoas que apresentam alguma forma de comportamento que não se coadune com o tradicional impositivo.

Foi assim que o Tribunal de Justiça de São Paulo acabou negando, por maioria de votos e contra o parecer do Ministério Público, um recurso impetrado por pessoa transexual que pedia, judicialmente, uma medida protetiva contra seu pai, que a espancou, alegando que o conceito de mulher constante da Constituição Federal é único e nada justificaria que fosse interpretado de outra forma diferente do conceito científico. Tal decisão, publicada pela revista Consultor Jurídico, demonstra um certo grau de insensibilidade por parte de julgadores, que não compreendem o feminino em sentido amplo e muito se apegam a conceitos já superados.

No caso, conforme informado pelo Conjur, a vítima alegou ter sofrido agressões que deixaram marcas visíveis, constatadas por autoridade policial. A decisão de primeiro grau foi proferida por uma juíza da comarca de Juquiá (SP), que negou a medida protetiva prevista na Lei Maria da Penha. O recurso foi apresentado pelo Ministério Público e, posteriormente, improvido por maioria.

A pessoa transgênera está, sim, na mesma condição social, familiar e sexual em que se encontra o gênero no qual ela se enquadra. Aquela que assumiu uma identidade feminina não prescrita ao nascimento e, por essa razão, foi agredida por seu pai, está na mesma posição da mulher cisgênero que não se subordina aos mandamentos patriarcais e se rebela contra as tentativas de dominação. Ambas as situações têm a mesma origem que se traduz pela tentativa de esmagamento do feminino por imposição machista.

É de se destacar que, no caso, houve um voto divergente da desembargadora Maria de Lourdes Rachid Vaz de Almeida que determinava a aplicação de medida protetiva, mencionando acertadamente que “não se pode uniformizar os conceitos de sexo, orientação sexual e gênero, sendo necessário realizar a distinção quanto à abrangência da assinalada proteção específica”. Trocando em miúdos, é de se perguntar: até quando as pessoas irão interferir na opção sexual alheia? Em que o comportamento de outrem afeta a vida privada de terceiros? Nossa sociedade é doente e não evolui quando o assunto é a liberdade sexual.

Desta forma, podemos considerar injustificável negar proteção a um ser humano que vem sendo agredido alegando-se inexistência de previsão legal, quando a Constituição Federal do Brasil assegura igualdade de direitos entre todas as pessoas (artigo 5º e seus incisos, da CF). A questão, obviamente, não é biológica, mas sim de posição social envolta nos mais injustificáveis preconceitos. Por esse prisma, é claro que o pai da vítima está equivocado em pretender “corrigir” a orientação sexual de seu filho, que se sente mulher, espancando-o, ao mesmo tempo em que os julgadores que negaram proteção a um ser humano em situação de vulnerabilidade também se equivocaram, a ponto de cometerem uma injustiça.

Todas as pessoas, independentemente de raça, cor, sexo, orientação sexual, situação financeira, posição política, classe social etc. têm direito à proteção judicial, quando em situação de vulnerabilidade. Negar essa proteção é conduta extremamente injusta, que não pode nem deve se ater a perquirir o que é ser mulher ou o que é ser homem biologicamente para a garantia de uma decisão judicial calcada na Justiça.

 

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