Dia desses precisei de um táxi para ir trabalhar. O motorista apanhou-me em casa e perguntou qual o trajeto. Disse-lhe para ir até a Rua dos Pinheiros e, de lá, eu explicaria o resto do caminho. Então ele me perguntou se eu gostaria que ele pegasse a “Estrada da Boiada”. Fiquei surpresa. A Estrada da Boiada, atualmente Rua Diógenes Ribeiro de Lima, há muito tempo deixou de ser estrada. E a boiada, então, desapareceu completamente antes do século XX nascer. Essa designação é muito conhecida dos antigos moradores da Região Oeste da Capital paulista, mas o taxista em questão tinha menos de quarenta anos.
Não resisti e disse ao motorista que me espantava vê-lo usar uma denominação já tão antiga e superada, ao que ele esclareceu tê-la aprendido com um cliente idoso que não conseguia chamar aquela rua por outro nome. A mim, também, essa lembrança antiga encanta. Estrada da boiada, passagem de terra batida, ladeada de árvores centenárias, cheiro de água limpa e de flores da estação, ar puro ao sol poente… Hoje é uma via asfaltada longa e plana, que cruza a região; uma reta margeando à distância o Rio Pinheiros, embora mudando de nome em certos trechos. A antiga estrada da boiada era o caminho pelo qual os pecuaristas levavam o gado para pastar e tomar água. Uma tristeza ver os rios deteriorados como estão hoje, sem falar do resto… Na região, todos conhecem a antiga estrada da boiada. Lindas casas foram construídas às suas margens e o tal senhor Diógenes Ribeiro de Lima ainda é esquecido em nome de uma antiga tradição.
Quando pensamos que o mundo está mudando e que os tempos idos vêm ficando cada vez mais para trás, uma tradição como essa, desaparecida há mais de um século, salta de repente para mostrar que não se apaga o passado com uma penada e que costumes vão passando de geração em geração de forma insistente. O ser humano se sente inseguro de mudar seus hábitos, ainda que se refiram a detalhes inofensivos.
No entanto, quando levamos em conta os péssimos hábitos dos políticos brasileiros que insistem em usar como próprios recursos que são públicos, e percebemos que, por mais punições previstas em Lei que possamos ter, esses hábitos não mudam, enxergamos o quadro de um futuro absolutamente inglório. Quando Lula assumiu a presidência da República, queixou-se da “herança maldita” deixada pelo PSDB, sem explicar detalhadamente qual seria essa herança. Hoje, podemos considerar que existe, sim, uma herança maldita que afoga o governo e que vem da má administração dos recursos públicos realizada pelo próprio Partido dos Trabalhadores e seus aliados, que pouco tem a ver com uma gestão voltada para os menos favorecidos, mas está intimamente ligada à mentalidade de um povo e, principalmente, de certos governantes. Assim como as pessoas resistem às mudanças de hábito e até a pequenas alterações do cotidiano, também os profissionais da política resistem bravamente ao respeito à linha divisória entre o público e o privado. E dessa herança maldita, infelizmente, poucos conseguiram se livrar. Hoje vivemos o caos político que escancara os desvios incessantes, descomunais e inconcebíveis de recursos públicos que conseguiram arrasar com a Petrobrás e com o país, sob a justificativa esfarrapada de que, em nome da causa, a ética não se aplicaria aos defensores das classes desfavorecidas.
É certo que algumas Instituições, como o Ministério Público Federal (MPF) e a Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB/SP) estão envidando esforços para o aperfeiçoamento das regras de transparência administrativa e combate à corrupção. A OAB formula sugestões interessantes, como a criação do Programa Nacional de Combate à Burocracia; a redução substancial dos cargos de livre provimento e nomeação, com estabelecimento de limite geral mediante requisitos de idoneidade e capacitação técnica para a função; autonomia financeira e administrativa dos órgãos de controle interno e externo da administração pública; mudanças nas regras de financiamento de campanhas eleitorais; regulamentação e transparência do lobby; fortalecimento das Agências Reguladoras, dentre outras.
Já o MPF saiu com uma sugestão inusitada no Brasil, inserida em seu site oficial, no sentido da realização de testes de honestidade, que consistiriam em “simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública.” Ainda segundo a publicação do MPF, “a realização desses testes é incentivada pela Transparência Internacional e pela Organização das Nações Unidas (ONU) e é um exemplo de sucesso em alguns lugares do mundo”.
Ou seja, a ética e a integridade do agente público não são características privativas de um partido, mas são sim atributos próprios de algumas (poucas) pessoas. Dinheiro público é para ser usado em favor de toda a sociedade, em busca do bem comum e do aprimoramento dos serviços públicos, jamais podendo se prestar ao enriquecimento pessoal dos governantes da vez.
Esqueçam Marx, Lênin, Trotsky. O governo que atualmente se intitula “socialista” está seguindo uma tradição espúria que pouco tem de interesse social, mas está ligada ao patrimonialismo. A existência dos programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida não justificam o desvio de recursos públicos nem podem assegurar a impunidade. O que temos de concreto é uma estrada da boiada que não tem começo nem fim, que mudou de nome, mas continua sendo a mesma lama, a mesma cena de horror de um país que não consegue virar a página de suas desgraças.