*Luiza Nagib Eluf, O Estado de S.Paulo
20 Setembro 2017 | 03h08
Fatos ocorridos nos meios de transporte públicos em São Paulo e em outras grandes cidades do Brasil, recentemente divulgados pela imprensa, revelaram que as mulheres são reiteradas vezes desrespeitadas nos locais públicos, principalmente se estiverem desacompanhadas e dentro de um veículo de transporte coletivo. Trata-se de comportamento extremamente constrangedor, antigo e absolutamente inaceitável, que demonstra o atraso e a escuridão que habitam a mente de um povo acostumado a presenciar violência no cotidiano.
Tais condutas, que se repetem ao menos nove vezes por dia, conforme dados colhidos pelas delegacias de Polícia de São Paulo, consistem em aproveitar o aperto entre os passageiros dos trens e ônibus urbanos, que se apinham em espaços superlotados, e esfregar o órgão sexual masculino nas passageiras que estiverem próximas, muitas vezes chegando à ejaculação. Passar as mãos nas partes íntimas das mulheres, apertar os seios ou enlaçar o corpo também fazem parte do repertório dos abusadores.
Recentemente, dentro de um ônibus, um sujeito se aproximou de uma moça que estava sentada, masturbou-se e ejaculou no pescoço e no rosto da vítima. Ele foi preso em flagrante delito por crime de estupro, porém, na audiência de custódia, o promotor de Justiça pediu e o juiz acatou a desclassificação da conduta do suspeito, passando-a à contravenção de importunação ofensiva ao pudor, que tem previsão de pena de multa apenas, liberando-o em seguida.
Tendo em vista que o histórico do mencionado agressor informava ter ele várias outras passagens pela polícia e pela Justiça por crimes da mesma natureza, a benevolência judicial causou indignação na população e o caso veio a público na forma de escândalo. Um agressor acusado de estupro se transformar em mero contraventor não parece razoável aos olhos da sociedade. Evidentemente, ele iria transgredir de novo. E foi o que aconteceu, já no dia seguinte. Dessa vez, ele atacou outra moça, dentro de um coletivo, com o mesmo procedimento, ejaculando em suas roupas. Preso em flagrante novamente, foi finalmente enquadrado no artigo correto do Código Penal, o 213, que cuida do crime de estupro. Mas, afinal, o que é um estupro?
Diz a lei que estupro é o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena é de 6 a 10 anos de reclusão (artigo 213 do Código Penal). Há, ainda, previsão de outras formas de estupro, como contra vulnerável, que podem elevar a pena a até 12 anos de reclusão (artigo 217 A do mesmo código). Se resultar na morte da vítima, a pena será de até 30 anos de reclusão.
Tratando-se o estupro de crime considerado hediondo, permanece a celeuma diante de uma conduta que não envolve penetração, mas acaba sendo considerada extremamente gravosa diante do rigor ou da inadequação do texto legal. Da forma como hoje se encontra prevista na lei a conduta do estupro, não há dúvida alguma de que ejacular no rosto de alguém é estupro, pois constitui violência física e moral. O que se mostra inadequado é considerar que manter uma relação sexual completa e forçada receba a mesma reprimenda. “Dura lex sed lex”, diriam alguns, mas estamos diante de uma encruzilhada.
Seria importante ampliar o rol dos crimes contra a dignidade sexual, incluindo um novo artigo que abrangesse uma conduta intermediária de ataque libidinoso, com pena maior do que a prevista para o assédio e menor do que a prevista para o estupro. O melhor caminho é reformar a lei para torná-la mais adequada à realidade atual. Em nenhuma hipótese a situação vivenciada pela moça dentro do ônibus, que a deixou em estado de choque, pode ser enquadrada na contravenção de importunação ofensiva ao pudor, como ocorreu.
A grita de alguns operadores do Direito diante do rigor legal do estupro foi impressionante. No entanto, afigura-se ainda mais terrível a insensibilidade com relação aos direitos da mulher. Para defender o abusador do ônibus, livrando-o do crime hediondo, muitas vozes se levantaram, curiosamente tanto da parte dos juristas ditos garantistas quanto do lado dos criminalistas conservadores, que nessa hora se uniram a pretexto de verberar contra o encarceramento do molestador serial, em inegável demonstração de patriarcalismo arraigado e indiferença à cotidiana violência de gênero.
É pitoresco perceber que os resquícios de “vergonha sexual” que imperavam no País nos idos de 1940 ainda constam de um Código Penal que vigora no Brasil em 2017. Nenhum leigo sabe com exatidão o que é uma “conjunção carnal” nem consegue definir com segurança o que são atos libidinosos. Seria mesmo urgente reformar a legislação nesse tema.
O Código Penal está em processo de revisão geral no Senado, mas tarefa de tal magnitude levará tempo. Alterar os tipos previstos no Título dos Crimes Contra a Dignidade Sexual no presente momento, de forma a fazer previsões mais adequadas ao estilo de vida nas cidades, é medida imperiosa. O projeto de Lei n.º 236/2012, em tramitação no Senado contempla a solução necessária, criando o tipo “molestamento sexual”, que seria “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, fraude ou aproveitando-se de situação que dificulte a defesa da vítima, à prática de ato libidinoso diverso do estupro vaginal, anal ou oral: Pena – prisão, de três a seis anos. Parágrafo único. Se o molestamento ocorrer sem violência ou grave ameaça, a pena será de dois a seis anos”.
Precisamos lutar por uma sociedade respeitosa e civilizada, o que pressupõe melhor adequação das leis e o total respeito aos direitos da cidadania.
*Advogada criminalista, ex-procuradora de justiça do Ministério Público de São Paulo e ex-secretária nacional dos direitos da cidadania do Ministério da Justiça, é autora de sete livros, dentre os quais ‘A Paixão no Banco dos Réus’, sobre crimes passionais